Graciliano Ramos escreveu Vidas Secas entre 1937 e 1938, ano da publicação do romance. O livro narra a história de uma família de retirantes do sertão brasileiro e aborda seus problemas, como a seca, a pobreza e a fome.
O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco... Montado confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.
Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado.
Ele, a mulher e os filhos tinham se habituado à camarinha escura, pareciam ratos.
Sinhá Vitoria beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.
Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás.
Eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.
Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e sustância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andaria certo? Não sabia.
Chegara naquela situação medonha - e ali estava, forte, até gordo, fumando seu cigarro de palha.
Estirou os olhos pela campina, achou-se isolado. Sozinho num mundo coberto de penas, de aves que iam comê-lo.
O romance originalmente se chamaria O Mundo Coberto de Penas, mesmo nome do penúltimo capítulo, mas o próprio Graciliano Ramos riscou o título original e escreveu Vidas Secas.
Acocorada junto às pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, sinha Vitória soprava o fogo. Uma nuvem de cinza voou dos tições e cobriu-lhe a cara, a fumaça inundou-lhe os olhos, o rosário de contas brancas e azuis desprendeu-se do cabeção e bateu na panela. Sinha Vitória limpou as lágrimas com as costas das mãos, encarquilhou as pálpebras, meteu o rosário no seio e continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.
Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantar-se e espalharam-se entre as pedras. Sinha Vitória aprumou o espinhaço e agitou o abano. Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida.
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento a cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas sinhá Vitória não queria saber de elogios.
- Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos de revolucionários
O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono.
O dia todo espiava o movimento das pessoas, tentando adivinhar coisas incompreensíveis.
Tinham deixado os caminhos cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Passou as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os olhos azulados brilharam como olhos de gato.
Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares.
Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem.
...chorou, mas estava invisível, e ninguém percebeu o choro.
Virou o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeu-se. Não queria morrer.
Vidas Secas já foi lançado na Polônia, Argentina, República Tcheca, Rússia, Itália, Portugal, França, Espanha, Estados Unidos e outros.
Em 1962, o livro ganhou o Prêmio da Fundação William Faulkner, nos Estados Unidos, que premia os melhores trabalhos de ficção da América.