Mensagens Com Amor Menu Search Close Angle Birthday Cake Asterisk Spotify PPS Book Heart Share Whatsapp Facebook Twitter Pinterest Instagram YouTube Telegram Copy Left Check

Crônicas de Mario Prata

Com muitos anos de carreira, Mario Prata se notabilizou por ser um grande dramaturgo e cronista. Veja um pouco de suas obras aqui.

11/02/1946
Pra lá de Marrakesch Mario Prata

Na noite anterior havia trabalhado feito um mouro.

Acordei e estava um verdadeiro calor senegalês. Depois de tomar uma boa duma ducha escocesa, quase dormitar num banho turco, fazer a minha ginástica sueca, passar a minha água de colônia, vesti meu terno azul turquesa de casimira inglesa (que fora um presente de grego de uma amante argentina), cuidei do meu pastor alemão, do pequinês, do dinamarquês, do meu gato siamês e, com uma pontualidade britânica, deslizando sobre o tapete persa, sai para fazer um negócio da china.

Logo voltei. Deveria ter saído com a minha refrescante bermuda, minhas sandálias havaianas e o autêntico chapéu panamá. Evitaria o calor, aquela tortura chinesa que só um bom sorvete de creme holandês refrescaria.

Ou teria sido melhor o terno príncipe de Gales, para evitar uma gripe espanhola ou uma febre asiática? A polaca gostaria mais.

Foi bom ter voltado. Meu periquito australiano e o meu canário belga, famintos, pediam semente de maconha colombiana. E minha galinha de angola, o resto da linguiça calabresa, resquício de um sanduíche americano com um pouco de salada russa e molho inglês, cortado com o meu afiado canivete suíço. Hambúrguer, nem pensar, que é para inglês ver.

Acabei me atrasando, chupei uma mexerica (ou era uma tangerina ou, ainda, uma bergamota?). Brinquei de sombra chinesa e quase dormi.

Para acordar, ligo a televisão, vejo um pouco do esporte bretão, descasco uma lima da pérsia, fico em dúvida entre o pão sírio e o pão francês, conto até dez em algarismos romanos e depois em algarismos arábicos e resolvo fazer um filé a parmegiana. Abro a janela veneziana, preparo um uísque paraguaio e ali, numa autêntica noite americana, tal e qual um tigre asiático, dou um sorriso amarelo, brinco com o porquinho da índia de porcelana inglesa e me sirvo à francesa.

Depois, balanço na poltrona de cana da índia com a cuba libre. Mas, como o pato vai ser à Califórnia, com pimenta malagueta ou pimenta-do-reino, misturado com arroz marroquino (ou à grega?), preparo a milanesa e tudo bem. Vai cravo da índia? Será que o melhor mesmo não seria um filé à cubana, para depois enfrentar uma montanha russa, arrotando couve-de-bruxelas?

Com a chave inglesa abro a porta emperrada, levo no bolso o meu soco igualmente inglês e saio ao encontro da minha cidade, do meu Brasil paraguaio.

Coisa de primeiro mundo.

Estadão, 08/05/1996


Copiar
Compartilhar
Uma tese é uma tese Mario Prata

Sabe tese, de faculdade? Aquela que se defendem? Com unhas e dentes? É dessa tese que eu estou falando. Você deve conhecer pelo menos uma pessoa que já defendeu uma tese. Ou esteja defendendo. Sim, uma tese é defendida. Ela é feita para ser atacada pela banca, que são aquelas pessoas que gostam de botar banca.

As teses são todas maravilhosas. Em tese. Você acompanha uma pessoa meses, anos, séculos, defendendo uma tese. Palpitantes assuntos. Tem tese que não acaba nunca, que acompanha o elemento para a velhice. Tem até teses pós-morte.

O mais interessante na tese é que, quando nos contam, são maravilhosas, intrigantes. A gente fica curiosa, acompanha o sofrimento do autor, anos a fio. Aí ele publica, te dá uma cópia e é sempre – sempre – uma decepção. Em tese. Impossível ler uma tese de cabo a rabo.

São chatíssimas. É uma pena que as teses sejam escritas apenas para o julgamento da banca circunspeta, sisuda e compenetrada em si mesma. E nós?

Sim, porque os assuntos, já disse, são maravilhosos, cativantes, as pessoas são inteligentíssimas. Temas do arco-da-velha. Mas toda tese fica no rodapé da história. Pra que tanto sic e tanto apud? Sic me lembra o Pasquim e apud não parece candidato do PFL para vereador? Apud Neto.

Escrever uma tese é quase um voto de pobreza que a pessoa se autodecreta. O mundo para, o dinheiro entra apertado, os filhos são abandonados, o marido que se vire. Estou acabando a tese. Essa frase significa que a pessoa vai sair do mundo. Não por alguns dias, mas anos. Tem gente que nunca mais volta.

E, depois de terminada a tese, tem a revisão da tese, depois tem a defesa da tese. E, depois da defesa, tem a publicação. E, é claro, intelectual que se preze, logo em seguida embarca noutra tese. São os profissionais, em tese. O pior é quando convidam a gente para assistir à defesa. Meu Deus, que sono. Não em tese, na prática mesmo.

Orientados e orientandos (que nomes atuais!) são unânimes em afirmar que toda tese tem de ser – tem de ser! – daquele jeito. É pra não entender, mesmo. Tem de ser formatada assim. Que na Sorbonne é assim, que em Coimbra também. Na Sorbonne, desde 1257. Em Coimbra, mais moderna, desde 1290.

Em tese (e na prática) são 700 anos de muita tese e pouca prática.

Acho que, nas teses, tinha de ter uma norma em que, além da tese, o elemento teria de fazer também uma tesão (tese grande). Ou seja, uma versão para nós, pobres ignorantes que não votamos no Apud Neto.

Ou seja, o elemento (ou a elementa) passa a vida a estudar um assunto que nos interessa e nada. Pra quê? Pra virar mestre, doutor? E daí? Se ele estudou tanto aquilo, acho impossível que ele não queira que a gente saiba a que conclusões chegou. Mas jamais saberemos onde fica o bicho da goiaba quando não é tempo de goiaba. No bolso do Apud Neto?

Tem gente que vai para os Estados Unidos, para a Europa, para terminar a tese. Vão lá nas fontes. Descobrem maravilhas. E a gente não fica sabendo de nada. Só aqueles sisudos da banca. E o cara dá logo um dez com louvor. Louvor para quem? Que exaltação, que encômio é isso?

E tem mais: as bolsas para os que defendem as teses são uma pobreza.

Tem viagens, compra de livros caros, horas na Internet da vida, separações, pensão para os filhos que a mulher levou embora. É, defender uma tese é mesmo um voto de pobreza, já diria São Francisco de Assis. Em tese.

Tenho um casal de amigos que há uns dez anos prepara suas teses. Cada um, uma. Dia desses a filha, de 10 anos, no café da manhã, ameaçou:

– Não vou mais estudar! Não vou mais na escola.

Os dois pararam – momentaneamente – de pensar nas teses.

– O quê? Pirou?

– Quero estudar mais, não. Olha vocês dois. Não fazem mais nada na vida. É só a tese, a tese, a tese. Não pode comprar bicicleta por causa da tese. A gente não pode ir para a praia por causa da tese. Tudo é pra quando acabar a tese. Até trocar o pano do sofá. Se eu estudar vou acabar numa tese. Quero estudar mais, não. Não me deixam nem mexer


Copiar
Compartilhar
Extravagância Mario Prata

Eu sonhei que estava numa pizzaria pedindo uma pizza meio calabresa, meio extravagância. E o garçom ainda me perguntava se a metade extravagância era com cebola ou não.

Acordei e pensei: extravagância tem mesmo nome de um tipo de pizza, não tem? Escritor adora trabalhar e brincar com as palavras. É que tem algumas que parecem significar outra coisa.

Por exemplo: paralelepípedo. Nada a ver com a pedra que o consagrou. Pra mim, paralelepípedo é uma micose que dá entre os dedos dos pés. O senhor tem pomada para paralelepípedo?

Alpendre não tem cara de varanda. Para mim alpendre é um sujeito que está estudando alguma coisa nova, um aprendiz naquilo. Não liga não, que ele ainda é um completamente alpendre no assunto.

Urticária, tá na cara que é uma vingança terrível. Podia esperar tudo de você, meu amor, menos essa inesperada urticária.

E península? Sabe o que é península? Remédio para urticária. O senhor tome uma península depois do almoço e outra depois do jantar. Península-C.

Carcará pode ser passarinho lá no nordeste, mas na minha cabeça sempre foi e sempre será inflamação no ouvido. Fale mais alto, que estou com um carcará desgraçado no ouvido esquerdo.

Agora pense na palavra travesseiro. Travesseiro é aquele homem que conduz a balsa nos rios.

Canivete, é óbvio: é o sujeito que só tem uma perna. É canivete desde pequeno.

Documento não tem nada a ver com papel algum. Documento é a cara que a pessoa fica quando surpreendida em delito. Encontramos o elemento completamente documento.

E o leitor, depois ler este texto anexo (anexo significa completamente sem apetite) pense um pouco no significado das palavras coitado e enfezado. E não vá se enfezar quando descobrir o que realmente significam.

Palavras, palavras, palavras, já dizia Shakespeare (que significa marca de geladeira). Aliás, comprei uma Shakespeare de oitocentos litros.

Revista BCP, 02/08/2002


Copiar
Compartilhar
Espirrando a crônica Mario Prata

Daquelas danadas, sabe como é? Das que derrubam. Te deixam na cama. Pois é onde deveria estar agora se tivesse uma outra profissão qualquer. Ligava para o serviço e, se precisasse, até arrumava um atestado médico. Dependendo da situação, faturava dois ou três dias.

Mas estou aqui, com o nariz escorrendo, depois de algumas pílulas e uns chás que uma boa samaritana me fez.

Estou dizendo isto porque sei que tem muita gente com gripe nestes dias frios. E esta gripe já deve ter nome. Sim, gripe que se preza logo tem um nome, já notou? Se não, é resfriado mesmo.

Me lembro quando era garoto, 13 anos, interno num colégio de padres, quando apareceu a Gripe Asiática. Acho que foi a mais famosa do século passado. Era tão danada que antes de chegar já era famosa. Claro, como o nome diz, começou lá na Ásia. E veio vindo. Os jornais anunciavam que ela já estava na Europa.

Aqui, no terceiro mundo, a gente se preparava para enfrentar a gripe que vinha de longe, a gripe famosa no mundo todo. E quando ela chegou, derrubou todo mundo. Foi um orgulho para todos nós. Estou revendo agora o dormitório do internato cheio de garotos deitados. Febre alta, aulas suspensas, um horror. Ninguém morreu, mas todo mundo deitou.

Me recordo de uma outra gripe famosa, a Calabar. Chamava assim porque era traiçoeira. Começo dos anos 70, auge da ditadura militar. Eu trabalhava na Última Hora quando ela chegou em São Paulo, vindo do norte. Os militares mandaram um telex para todas as redações do país proibindo terminantemente que se escrevesse no jornal o nome da gripe que derrubava todos nós, inclusive – acho – os milicos. Não podia escrever Calabar nos jornais, nem dizer nas rádios, nem nada.

Explico: Chico Buarque e Ruy Guerra haviam escrito uma peça chamada Calabar e a Censura Federal a proibiu. Não podia nem ser lida. Aí os militares começaram a achar que falar na gripe Calabar era provocação para todo mundo lembrar do Chico e do Ruy. Talvez você não acredite nesta história, mas quem trabalhava nas redações naquela época pode confirmar.

Já teve várias gripes com nomes de mulheres famosas, que vinham acompanhadas da devida explicação: é porque leva direto pra cama. Uma maldade. Peguei a Xuxa, entre outras.

Dei uma geral agora na Internet para ver se esta minha gripe já tem nome, pois, já disse, gripe sem nome, pra mim, é resfriado. E, apesar de todo mundo estar com ela, ainda não tem, não.

Pouco sei sobre gripes, apesar de ser filho de médico. Sei que a palavra tem origem francesa. Donde se conclui que foi lá que surgiu o vírus? Tem cara de francesa mesmo esta doença. Passou por Portugal e chegou nos nossos índios matando boa parte deles. Entradas e Bandeiras, se chamava a gripe naquela época.

Hoje em dia até o Bin Laden já virou nome de gripe: quando você pensa que acabou, ela volta mais surpreendente ainda.

Estadão, 03/09/2003


Copiar
Compartilhar
Bidu Mario Prata

Tinicioem palavras que somem. Expressões desaparecem. Para onde foram?

Cartear marra é uma delas. Usadíssima nos anos 60, não vejo ninguém mais carteando marra. Quantas vezes nós, adolescentes, nos bailinhos, ao vermos alguém de outra cidade querendo dançar com as nossas meninas, chegávamos perto: não vem cartear marra aqui, não. Cartear marra era querer ser metido a gostoso.

Hoje, décadas depois, vou ao dicionário. Cartear significa também chutar. E marra, coragem. Portanto a expressão estava correta: fingir coragem. E, cá entre nós, naquele tempo todo mundo carteava marra.

Outra genial: par de besta. Tipo assim: o cara veio com par de besta pra cima de mim e eu sai na porrada. E eu nunca entendia porque o sujeito com um par de besta (o animal, claro), significava que era todo valentão. O que é que a besta tinha a ver com valentia?

Mas hoje, descobri. O primeiro significado da palavra besta é uma arma, uma espécie de arco para atirar setas. Portanto, o cara que vinha com par de besta, vinha armado, vinha para agredir, para ofender.

Por outro lado, e ainda mais bestial, o interessante é que o sujeito metido a besta era o metido a gostoso, a bonitão, a conquistador. Aqui, no caso, nunca entendi o porque da besta. Se você for metido a besta, me explique.

E tinha uns mais valentões que vinham com par de besta cartear marra. Geralmente eram mais fortes que nós e a gente se danava (a palavra não é bem esta) em verde e amarelo. E eles tiravam as nossas minas para dançar. Justamente a que estava de tomara-que-cai e havia nos prometido dar-tábua nele. Depois ela me explicaria: queria o quê? Que eu tomasse chá de cadeira? Você já imaginou o que significa levar-tábua e tomar chá-de-cadeira? Nem que a vaca tussa você sabe. E o gostosão com a nossa menina nos achando bola-murcha.

Mas uma que eu nunca entendi mesmo – até hoje – é mixar o carbureto. Passei a manhã de hoje olhando dicionários, dando uns telefonemas e nada. Se alguém aí souber a origem, me diga. A expressão era usada – e muito mesmo – quando a coisa – qualquer coisa – não dava certo. Se dizia: mixou o carbureto. Será que a origem seria acabar o gás? Pode ser?

E o cara que era café-com-leite, lembra? Também não tem o menor sentido. Café-com-leite era aquele sujeito quer não contava, que não sabia fazer nada. Podia estar a mais num time de futebol, podia dançar com as minas. Café com leite era quase um bobo.

Naquela época não tinha pêr-répis, a não ser se você fosse gilete. A gente saía para encher o picuá dos outros e qualquer problema, novesfora-zero.

Mas o que mais me irritava, na adolescência, era a minha irmã mais velha achar que eu era inocente. Já tinha uns doze anos e ela dizia que eu era inocente. E olha que eu já era culpadíssimo!

Me desculpe cartear tanta marra…

Estadão, 11/02/2004


Copiar
Compartilhar
O dedo Mario Prata

Na terceira manhã em que saiu aquela gotinha clara, resolvi tomar providências. Mesmo porque a minha mulher olhava meio de lado. Para a gotinha e para o local de onde saía a gotinha. Lá, no incauto cabisbaixo.

Me lembrei que a minha irmã havia se encontrado com um velho amigo de infância de Lins, o Plínio, num hotel de Salvador. E que o Plínio era hoje um importante urologista em São Paulo. Essas intimidades é melhor com gente conhecida, de confiança, pensei. Ligo para a minha irmã, pego o telefone e marco uma hora. E ele me disse que devia ser uma prostatite, também conhecida como gota matinal, que eu não me preocupasse, mas que tinha de fazer o toque. Toque, onde? Marcou horário para o sacrifício.

Foi quando me recordei que o Plínio era gordinho na adolescência. Ligo de novo para a minha irmã. Ela confirma, o cara está gordo. E gordo não tem dedo fino, nem mole, concluí.

Ao cumprimentar o velho amigo, fixei-me mais no dedo do que nos olhos.Uns vinte minutos para colocar as novidades em dia. Pra relaxar, talvez. E eu não tirava o olho do dedo dele. Bem grosso.

Depois das preliminares, me manda tirar a roupa e ficar de quatro em cima da mesinha. Até aí tudo bem. Ele começou a comentar o encontro dele com a minha irmã em Salvador. Ele estava em lua de mel. Convenhamos que lua de mel não é um assunto muito apropriado para um momento delicadíssimo como aquele. Me explicava com quem tinha casado enquanto colocava luvas e vaselina.

Pegou uma folha de papel e colocou debaixo de mim, que já estava de quatro havia uns cinco minutos.

– Pra que isso, Plínio?
– É que, em alguns casos, quando a gente massageia a próstata, a pessoa pode ejacular.

Sentei.

– Vamos conversar. Você está dizendo que pode me enfiar o dedo no rabo e eu gozar?
– É normal. Mas eu estava de falando da praia do Buraquinho…
– Um momento, Plínio. Todo mundo goza?
– Meio a meio.
– Plínio, se eu gozar, amanhã Lins inteira vai saber disso. Conheço aquela cidade. Vai sujar. Já acham que artista é meio viado… Cinquenta por cento é uma porcentagem muito alta.
– E você acha que eu vou sair por aí dizendo que você ejaculou?
– Você, não. Mas no interior tudo se sabe. Não se sabe como. Melhor deixar pra outro dia. Perdi o clima.
– Fica de quatro aí e não me encha o saco.

Fiquei. Tenso.

Ele colocou o dedo lá e continuou a falar da lua de mel, da praia do Buraquinho. E eu lá, compenetrado. No palavreado médico, meu pênis (que palavra mais pornográfica!) praticamente sumiu, não ejaculei e foi uma luta para o Plínio colher a tal gotinha.

Feitos os exames o diagnóstico dele estava certíssimo. E voltamos a ser amigos. Mas sempre vestidos, de pé e de frente um para o outro.

E nunca mais falamos da praia do Buraquinho. Que, aliás, é uma delícia de praia em Salvador.

Revista de Urologia, 13/0819/99


Copiar
Compartilhar
fechar